Viver e aplicar a misericórdia
- Coisas do Alto
- 1 de mar. de 2021
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Iniciamos ontem a segunda semana da quaresma. Deus tem nos falado, a partir das leituras que a Igreja nos oferece neste tempo, da importância da oração, do perdão, da caridade, da mortificação e de quão urgente e necessária é a nossa conversão.
Hoje, mais uma vez, o Senhor nos chama à conversão. No Evangelho desta segunda-feira Jesus vem nos alertar sobre algo que certamente fazemos muito, usar a nossa "régua de moralidade", o nosso "senso de perfeição" não para levar as pessoas para Deus, mas para apontar os seus erros, julgando-as e condenando-as.
Anunciar a verdade, desmascarar e condenar o pecado (e não o pecador), levar o outro a enxergar os seus erros é algo que faz parte da nossa vivência de cristão. Somos chamados a "ser sal da terra e luz do mundo". Precisamos proclamar a verdade, denunciar o erro, porém é preciso usar da misericórdia para com o outro, a fim de que se aproxime de Deus, e não se distancie ainda mais d'Ele.
Há uma diferença muito grande aqui! Como cristãos precisamos ajudar o outro a enxergar seus erros, suas faltas, onde precisa mudar, sem julgá-lo ou condená-lo, sem o expor ao ridículo, sem expor uma superioridade sobre ele, mostrando-lhe o caminho de conversão, o Deus que é amor, que o perdoa, que o ama, apesar dos pecados, que quer a sua conversão, o seu arrependimento, conduzi-lo por este caminho a fim de que faça uma experiência com a misericórdia de Deus.
Trata-se de olhar para o outro com misericórdia. Certamente denunciar o pecado, mostrar a verdade, até sendo incisivo caso seja necessário, mas jamais condenando-o ou julgando-o, pois tal tarefa somente a Deus pertence.
Olhando para essa realidade posso me perguntar: qual é o meu comportamento? Como lido com isso? Sou aquele que impõe a Verdade revelando aos outros seus erros e faltas, deixando-lhe ali, à beira do caminho, nutrido da minha superioridade, da minha "santidade", minha arrogância? Ou sou aquele que revela ao outro a verdade, conhecendo a sua realidade, mostrando-lhe o caminho do arrependimento para que ele faça a experiência com a misericórdia de Deus, se converta e assuma um caminho de conversão? Me coloco ao lado do outro ou acima do outro?
A ordem de Jesus para nós hoje é muito clara! "Sede misericordiosos como o vosso Pai é misericordioso" (Lc 6, 36). A nossa maneira de ser e agir precisa se assemelhar à maneira de ser e agir de Deus. Não podemos nos esquecer que o Pai é misericórdia, que o Pai um dia foi misericordioso para conosco e continua sendo, a cada dia, a cada instante, constantemente Ele nos dá a oportunidade de recomeçar, de levantar-se novamente e seguir adiante, pois Ele nos ama, Ele nos deseja inteiramente para Si. E nós não temos nenhum tipo privilégio por conta disso, não somos superiores ou melhores do que os demais, apenas fomos agraciados com a misericórdia de Deus que nos alcançou e que deseja alcançar a todos. Da mesma forma que Ele nos deseja, nos ama, também deseja e ama aqueles que estão distantes, como nós um dia estivemos, deseja que se aproximem d'Ele, que se deixem tocar pela Sua misericórdia e Seu amor.
"Ser misericordiosos", "não julgar", "não condenar", "perdoar", "dar". Todas são ações desafiadoras para nós. Não é fácil não julgar os outros, não condenar os outros, perdoar o próximo por aquilo que fez, dar ao outro o nosso melhor, ainda que sem qualquer reconhecimento, mas precisamos nos esforçar para viver essa dinâmica da misericórdia de Deus, de ser esse rosto da misericórdia do Pai no mundo.
Não nos esqueçamos que, como diz o evangelho "com a medida que medirdes sereis medidos também". Deus é misericórdia, mas também é justiça.
Nos lembramos aqui do "Mito de Procusto". Procusto é um personagem da mitologia grega, homem impiedoso que possuía uma cama de ferro do seu exato tamanho. Sua diversão era capturar os viajantes e obrigá-los a deitar-se em sua cama. Se fossem maiores, cortava-lhes as pernas, se menores esticava-os até caberem exatamente nela. Ou seja, matava a todos, qualquer que fosse sua altura. Quando Atena o procurou para convencê-lo a parar com essa prática, seu argumento foi que a finalidade era unicamente acabar com a diferença entre os homens, mas essa não era sua real intenção, pois até os que eram da mesma altura que ele acabavam mortos, pois possuía uma outra cama, de medida diferente, que mantinha escondida para estes casos.
O terrível comportamento só se findou quando Teseu consegui prendê-lo, aplicando contra ele o mesmo suplício: cortou-lhe a cabeça e os pés.
Este mito, que não é uma história cristã, nos faz refletir sobre a nossa "régua da justiça", que muitas vezes queremos aplicar em todos aqueles que pensam diferente de nós, sem piedade, sem misericórdia. Deus, que é amor, deseja todas as pessoas. Ele nos chama a ser misericordiosos como Ele é.
Aproveitemos este tempo da quaresma para buscar a mudança do nosso comportamento, "frearmos" a nossa língua, o nosso ímpeto de "juízes", pois tal julgamento cabe somente a Deus. Cuidemos para que no fim, assim como aconteceu com Procusto, não sejamos condenados com a mesma medida que medimos os outros.
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